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sábado, 22 de novembro de 2014

Capítulo 8 na íntegra

                               8. Encontrar respostas, traz à tona           
                                                      perguntas.  

        
Lá estava eu novamente, num sonho. O mesmo lugar, as mesmas pessoas, mas ainda sem sons e muito menos respostas. A mesma cena, o mesmo sonho. Pessoas enterrando a caixa prateada. E como das outras vezes, meu sono tinha sido roubado e acabei sentando na cama e olhando para a penumbra do meu quarto. Depois de alguns minutos, levantei e fui até a janela. A lua estava cheia, e plena banhava a noite escura com seu brilho pálido prateado. Algo em mim me empurrava para a floresta, para aquele lugar. Mas em contra partida, talvez meu senso de realidade, me dizia para não agir como uma maluca e deixar isso pra lá.  

Com um suspiro profundo, fechei a cortina e voltei para a cama. Eu sabia que tudo que eu não precisava naquele momento era agir como uma covarde. Assim que deitei, cobri a cabeça com o travesseiro, talvez tentando fugir de algo que na na verdade, estava dentro de mim. Onde estava minha coragem agora? Onde estava minha convicção de encontrar a tal resposta? Onde tinha ido parar minha promessa de não parar, de não descansar enquanto não encontrasse a explicação para tudo aquilo? Talvez ela tivesse se escondido atrás do medo de encontrar algo desconhecido. De topar com algo de proporções que eu não imaginava. A resposta que eu tanto queria, no fundo me dava medo.
Então, por aquela noite, resolvi não fazer nada. Embora eu soubesse o que deveria fazer. Virei para o lado e me concentrei em expulsar qualquer pensamento da minha cabeça e dormir. Sem nenhuma surpresa, acordei na manhã seguinte com a lembrança de ter tido de novo e várias vezes, o mesmo sonho. Quem seriam aquelas pessoas? O que tinha na caixa que enterraram? Com uma olhada rápida para o relógio na parede, descobri que mal se passavam alguns minutos das seis horas da manhã. Sabendo que não conseguiria mais dormir de jeito algum, pulei da cama indo ver o cenário daquele sonho; a floresta.
Abri a cortina e tive uma surpresa. Névoa. Sim, uma densa e branca bruma que até tocava o chão, envolvia os troncos das árvores e estava bem deslocada estando ali numa manhã de verão. O outono só começaria no próximo mês, então as manhãs nebulosas ainda estavam longe. Estreitei os olhos, e olhei a rua deserta. Tudo que se podia ouvir naquela manhã de domingo era a orquestra formada pelo canto de diversos pássaros. A fauna em Bom Jesus era bem diversificada, principalmente no tocante às aves. Eram muitos e de diversas espécies, que cantando juntos naquela manhã, formavam um cenário bonito e misterioso.
Minutos depois de apenas ficar olhando, resolvi ir lá fora. Sem um porquê específico, ou com um que eu não queria admitir. Apenas coloquei meus chinelos e saí do quarto, desci as escadas com muito cuidado para não fazer barulho, e com o mesmo cuidado abri a porta da cozinha. Assim que saí, fui atingida por uma manhã fresca e muito agradável. O céu estava azul, mas o sol ainda não havia nascido. Fui até o portão e segurei nele, sentindo a madeira fria e coberta pelas pequeninas gotas de orvalho. Mirei a floresta e assim fiquei por vários minutos. Questionando-me em várias coisas, acabei perdida em meus pensamentos.
Então, algo incrível ocorreu. Como que uma antiga lembrança surgindo na realidade, uma grande borboleta azul e preta surgiu flutuando pela neblina transparente e esbranquiçada. Meus olhos seguiram seu voar delicado e belo. E assim como há dezenove anos atrás, abri o portão e atravessei a rua atrás dela. Entrei na floresta e a vi voando em círculos pelo espaço entre as árvores para cada vez mais alto. Ao seguir sua suave trajetória para o alto, vi os primeiros raios dourados do sol que nascia, esgueirando-se pelas folhas e galhos das árvores e projetando-se pela neblina.
Era tão lindo. Como algo que ocorria para me tirar um pouco da realidade estranha e cada vez mais obscura que eu vivia. Contemplei o voo da borboleta até ela sumir pela floresta, então fechei os olhos e prestei atenção ao canto dos pássaros. Tudo estava lindo e perfeito, mas então uma suave brisa começou a soprar. As folhas caídas no chão começaram a voar ao ponto que a brisa transformava-se num vento forte. Abrindo os olhos, descobri que as folhas giravam em minha volta como se eu estivesse no olho de um tornado. Me assustei com a mudança brusca do tempo e olhando ao meu redor, constatei que aquilo não era simplesmente uma obra da natureza. Era de novo, meu sobrenatural.
O vento ainda soprava forte mantendo o redemoinho de folhas ao meu redor, quando - como que vindas de algum projetor – imagens formaram-se à minha frente, na parede inconstante de folhas. Eram pessoas em batalhas que, pelas suas roupas, pareciam muito antigas. Espadas e sangue se misturavam nas imagens sobrenaturais e desconexas, como num filme do começo do século passado. Vi estacas e finalmente... vampiros. Deixei de lado o medo – deixaria para me assustar depois – e estendi a mão para as imagens. Mas assim que fiz isso, as folhas caíram no chão e o vento cessou imediatamente.
Engoli em seco e finalmente comecei a compreender que, o que quer que fosse que  eu tivesse que descobrir, tinha a ver com os misteriosos Caçadores. Os Von Otman. Mas por quê? Eu me perguntei. Talvez fosse pela antiga e complexa ligação de minha família com eles. Mas por que eu? Será que era porque eu tinha visto o Caçador? Aquilo tudo na verdade seria o sobrenatural deles e não meu, como eu pensava? Será que os Caçadores queriam entrar em contato comigo? Mas por que comigo? Eles poderiam muito bem assombrar George e todo o resto do maldito Conselho. Espere... assombrar? Que proporções teriam os poderes deles?
Só então me dei conta de que poderia estar sendo observada. Me virei para todos os lados procurando qualquer coisa entre as árvores. Mas se estivesse mesmo sendo observada por um deles eu não corria perigo... ou corria? Então senti um calafrio percorrer meu corpo, talvez fosse por estar com meu shortinho xadrez de dormir e uma regata branca às seis e alguma coisa da manhã dentro da floresta.
“ Tudo bem... chega de mistérios sobrenaturais por hoje. ”
Pensei antes de correr de volta para a rua. Assim que a alcancei, percebi que toda neblina havia sumido e o sol brilhava. Tudo perfeitamente normal.
— Onde você estava? - Mariana perguntou assim que entrei na cozinha.
— Ah... saí pra dar uma volta e aproveitar a manhã. - falei a primeira coisa que me veio à cabeça e ela ergueu uma sobrancelha.
— De pijama?
— Hum... não tem ninguém na rua à essa hora então não tem problema. Mas e você, o que faz acordada tão cedo? - perguntei indo pegar uma xícara.
— Não consegui mais dormir.
— Estranho, você sempre dorme até tarde. - observei, enquanto colocava café com leite na xícara.
— Pois é... bem é que... sei lá. - Mariana hesitou e eu tive a impressão de que ela queria me contar alguma coisa, mas que por alguma razão tinha desistido.
— Hã?
— Esquece... temos que sair mais cedo hoje. Vamos ajudar na arrumação da praça para o evento de hoje. - anunciou ela toda eufórica.
— Como assim vamos? Não me lembro de ter  me envolvido nisso. - retruquei levantando uma sobrancelha.
— Não se preocupe, eu sei disso. Por isso eu mesma envolvi você e a Ághs.
— Eu o quê? - Ágatha perguntou entrando na cozinha, e eu maneei a cabeça.
— Você vai ajudar junto com Lavígnia e eu na arrumação da tarde de cinema.
— Mesmo? Nem me lembro de ter concordado com isso mas... que legal! - minha irmã aceitou a ideia numa boa enquanto eu ainda relutava.
— É por isso que eu gosto de cidade pequena – recomeçou Mariana – a gente se envolve mais com as coisas e consequentemente com as pessoas. Adoro estar envolvida nessas em tudo.
— E envolver os outros também. - observei irônica, mas fui ignorada pelas duas.
— E eu não sei?
— Claro que sabe, você deveria ter visto a minha festa no mês passado. Foi algo fantástico.
Exibiu-se Mariana. Mas eu não estava mais ali. Minha mente tinha outra vez se voltado para as coisas que andavam acontecendo comigo. E minha certeza de que era algo dos caçadores, se fortalecia cada vez mais. Eu sentia que tudo aquilo era apenas uma tentativa de contato deles comigo. O porquê daquilo, era o que eu tinha que descobrir. Mas o que deviam querer comigo? Quando dei por mim, o assunto que envolvia as duas comigo à mesa tinha acabado, e as duas estavam assim como eu, totalmente dispersas em algo. O fato me pareceu bem interessante e  prestei atenção na cena. Sim, elas estavam pensando muito em algo.
— Bem... e a que horas nós vamos para a praça? - perguntei, tirando as duas do transe.
— Hã? Ah... lá pelas dez horas mais ou menos. O evento vai começar à uma da tarde então temos que ter tudo arrumado até lá. - respondeu minha prima.
— O quê?  Mas e como vamos almoçar? - protestou minha irmã.
— Vou levar uns sanduíches. - replicou Mariana ao se levantar e Ágatha trocou um olhar resignado comigo.
Como planejado, às dez  horas saímos de casa no meu carro. Minha avó tinha ido mais cedo, como parte da associação de moradores da cidade ela tinha um pouco mais de coisas para se preocupar do que nós. Meu avô – como sempre – havia ido torturar peixinhos inocentes em algum rio ou lago da cidade junto com os amigos. Quando estacionei na frente da praça, ela já estava com algum movimento, mas apenas do pessoal que organizaria a coisa.
— Vou no prédio da prefeitura para pegar as coisas, vocês vem comigo? - perguntou Mariana ao sair do carro.
— Claro. - minha irmã e eu concordamos em uníssono.
Momentos depois cada uma de nós voltava para a praça com uma grande caixa de papelão. No caminho cumprimentamos várias pessoas conhecidas, muitos jovens ali tinham brincado conosco nos plácidos tempos de infância.
— Vou colocar esses arranjos do outro lado. - Mariana anunciou se afastando.
— E eu vou levar isso para a barraca de refrescos. Acho que vou ter ajudar a montá-la também. - disse Ágatha, torcendo o nariz.
— Tudo bem, nos vemos depois. - concordei vendo-a se afastar. Eu só queria saber como faria para pendurar aquelas faixas sem ajuda.
O enorme telão onde os filmes seriam reproduzidos já estava montado no espaço central da praça. Barraquinhas de comes e bebes estavam sendo montadas ao redor da praça e em baixo das árvores. “Tarde de cinema ao ar livre.  Uma realização da prefeitura de Bom Jesus, RS” eram os dizeres orgulhosos da maior das faixas. Exatamente a que eu teria que colocar no acesso principal da praça. Eu só esperava encontrar alguém para me ajudar na tarefa.
— Oi Lavígnia, há quanto tempo hein? Tá tirando umas férias? - perguntou Eliana, a filha da dona do mercadinho que ficava na rua da minha casa. Com a qual Ágatha e eu brincamos muito quando pequenas.
— Pois é... cansei dos ares poluídos da capital. - respondi continuando a andar. Não era verdade, eu amava até mesmo o cheiro de combustível que os carros deixavam no ar. Eu amava a minha cidade, mas simplesmente precisava ficar longe por um tempo.
— Posso imaginar, a gente se vê mais tarde.
— Claro, até lá.
Concordei, indo em direção à entrada principal da praça. Larguei a faixa ao pé de uma árvore grande e fui atrás de uma escada. Consegui que me emprestassem uma de metal, fui com ela até a árvore e comecei a prender a faixa em um dos galhos.
— Oi, quer ajuda? - ouvi uma voz conhecida e ao olhar para baixo vi Lídia com um sorriso no rosto.
— Ah, como vai Lídia? Você chegou na hora certa, pode prender a outra ponta para mim? - pedi, indicando a outra  árvore há uma boa distância.
— Claro. - prontificou-se ela, e antes que eu pudesse recomendar-lhe que conseguisse uma escada, ou esperasse eu terminar, ela já estava quase na outra árvore.
“Quero ver como ela vai prender a faixa sem a ajuda de uma escada.”
Pensei ao terminar de prender a faixa. Quando olhei na direção dela, descobri que Lídia tinha – sabe-se lá como – subido na bifurcação da árvore e  se pendurado num galho alto, onde prendia a outra ponta da faixa. Fiquei olhando a cena meio pasma. Como ela tinha conseguido subir na bifurcação da árvore se a mesma era mais alta que ela? Lídia devia ter no máximo um metro e sessenta e cinco de altura.
“ Bem, não esqueça que ela ainda é a garota estranha do parque! ”
Lembrei a mim mesma. Com a nossa aproximação e a consequente amizade, eu tinha meio que deixado pra lá a cena do parque. Mas  isso  não mudava o fato de que ela parecia ter uma  extrema habilidade em tirar os pés do chão.
— Lídia. Como conseguiu subir aí? - indaguei olhando para cima. Ela deu um meio sorriso e ao terminar com a faixa pulou para o chão numa aterrizagem quase sem ruído algum.
— Ah, eu adoro subir em árvores. Passei minha infância inteira brincando de escalar as árvores da floresta perto do haras. - explicou ela parecendo orgulhosa, para minha expressão confusa.
— Ah... parece bem razoável. Eu já estava começando a associar você com a mulher gavião. - brinquei e nós duas rimos.
— Sério? Adoro ela, é minha heroína favorita. - comentou enquanto voltávamos na direção da caixa de papelão.
— A minha é a Mulher Maravilha, acho o máximo mulheres fortes e poderosas.
— Isso mesmo, totalmente independentes. Nada de depender de homens!   Completou Lídia enquanto nos sentávamos na grama e tirávamos as fileiras de luzinhas que iríamos ter que desembaraçar.
— Isso mesmo. - concordei, rindo.
— Nossa, quem será que fez isso com as luzes?
— Provavelmente quem as tirou da decoração de Natal. - falei.
— Hum... vai dar o maior trabalho desembaraçar tudo. - reclamou ela ocupada em tentar salvar as luzes do emaranhado.
— Ai... é mesmo. - suspirei – Seus irmão estão por aqui? - mudei de assunto.
— Hum-hum.... Léo está ajudando na instalação da tela e do som, e o Neit deve estar carregando alguma coisa por aí. As garotas daqui brigam pra ver quem consegue a atenção dele por mais tempo. - contou com um risinho.
— Hum, posso imaginar. - falei meio incomodada... mas por quê?
— A ex dele é meio maluca, sabe? Tomara que não esteja por aí pra fazer &ceninhas&.
— Hã? Como assim? - franzi as sobrancelhas.
— Ela ainda é super apaixonada pelo Neit, mas ele terminou o namoro por causa dos ciúmes exagerados dela.
— E ela não aceita isso?
— Exatamente. - confirmou Lídia e eu apertei os lábios.
Não era de se estranhar que Neitan tivesse uma legião de garotas apaixonadas atrás dele. Mas isso não era lá um assunto muito meu, de fato que tratei de não dar atenção à isso.
— Nossa, que tempo maluco. - Lídia comentou olhando para o céu que aos poucos tornava-se nublado.
— Hum... só espero que não comece a chover. - desejei.
— Não vi nada na previsão do tempo sobre chuva, na verdade o domingo era para ser de sol entre nuvens. É por isso que digo que esse tempo está maluco, tomara  mesmo que não chova.
Ela falou calmamente enquanto desenrolava os fios. Imediatamente algo me veio à mente, Harriet. A vampira que tinha o estranho dom e influenciar o clima e seus elementos. Seria ela a provocar as nuvens pesadas que impediam que a luz do sol nos alcançasse? Eu tinha as minhas dúvidas. Na verdade, depois das coisas estranhas que andavam me acontecendo, eu sentia minha aversão por eles voltar a crescer. Aos poucos estava voltando a vê-los como assassinos que deveriam ser detidos. É claro que em contra partida havia meus sentimentos por Damian. Eu estava começando a ficar realmente confusa.
— Credo, como existe gente sem noção. Olha só. - a voz de Lídia me trouxe de volta.
— O quê? - perguntei sem entender e ela apontou para além da fita que fechava a praça.
— Aquela garota, que esquisita.
Segui a direção que ela apontava e levei um susto. Eu reconheci imediatamente a pessoa que havia chamado a atenção de Lídia. Não era exatamente uma pessoa. Seus cabelos extremamente vermelhos chamavam a atenção de longe, o vestido preto e decotado ia até os joelhos e ela se protegia da quase inexistente luz do sol com uma sombrinha preta de renda. Bem ao estilo do começo do século passado. Marianjel. Estava parada na frente da praça e olhava com interesse ao redor. Mudei de posição sentando-me com as costas apoiadas contra o tronco da árvore, afim de que ela não me visse. Mas o que ela estava fazendo ali? Teria Harriet sumido com o sol para que aquela maldita procurasse uma vítima em plena luz do dia?
— É mesmo – concordei tentando parecer indiferente – nem tem sol e ela está com uma sombrinha. Maluca mesmo.
— Mas está chamando a atenção dos garotos. - observou ela puxando o celular do bolso.
— Ela é bonita, sabe como os garotos são. - apontei dando mais uma espiada na vampira antipática. Felizmente ela não havia me visto. Eu não queria que eles soubessem que eu estava em Bom Jesus.
— Pois é. - concordou Lídia parecendo digitar uma mensagem.
Segui os movimentos de Marianjel por mais alguns segundos, antes dela caminhar até uma Mercedes preta pelo lado do passageiro e sumir. Sacudi a cabeça sem compreender. Parecia procurar alguém ou talvez quisesse conferir alguma coisa. Eu só esperava que não estivem todos por ali afim se aproveitarem-se da grande aglomeração de pessoas que logo se formaria na praça para fazerem alguma vítima. Lá no fundo, eu sabia que nem todos da casa Moreton Cavagnaro obedeciam o trato que restringia sua escolha de sacrifícios. Eu só não entendia como sabia, mas sabia.
— Oi meninas, muito trabalho aí? - ouvi a voz de Neitan, e ergui os olhos para encontrá-lo usando uma regata verde escura.
— Já estamos terminando de desemaranhar essas luzinhas, mas vamos precisar de ajuda para colocá-las no lugar. - respondeu Lídia enquanto eu me levantava.
— Eu já terminei essas, me pediram para colocá-las nas árvores da frente da praça. Então... vou indo. - falei, dando uma olhadinha para ele que sorriu pra mim.
Saí em direção à árvore onde as luzinhas seriam colocadas mas tropecei em um fio que havia sobrado. Quando olhei para trás, notei que Neitan havia se agachado ao lado da irmã e os dois conversavam, parecia um assunto sério. Um assunto que não era da minha conta, então tratei de ir cumprir minha parte na arrumação do lugar.
— Quer ajuda? - ouvi a voz dele ao meu lado dois minutos depois. Eu estava meio enrolada então era melhor aceitar.
— Claro, obrigada. - concordei e logo tudo estava arrumado.
— Como você está hoje? - ele perguntou, ao prender a última ponta do fio.
— Hã? - indaguei confusa.
— Quase te atropelei ontem, lembra?
— Ah... já que foi quase eu diria que estou bem. - respondi com um risinho.
— E sobre o resto?
— Que resto? - repeti, me voltando para ele.
— A parte de bancar a sedutora comigo. - Neitan trouxe de volta o assunto que eu queria esquecer. Mas eu ia tentar disfarçar.
— Sedutora?! Do que está falando? - perguntei sem conter o riso. Ele riu de canto e depois de uma olhada perdida para o chão, chegou bem perto de mim até que eu me encostasse na árvore.
— Isso não te lembra nada? - agora ele estava sendo sedutor ao encostar as duas mãos na árvore, me deixando presa entre seus braços.
— Não. - neguei num sussurro e ele riu.
— Por que você faz isso, Lavígnia? - cobrou ficando sério.
— Faço o quê?
— Me deixa confuso. - confessou ele e eu pisquei.
— Não sei do que você está falando, me deixe ir. - pedi.
— Eu sei que você sabe.
— Não, eu não sei! O que deu em você Neitan? - exigi, olhando firmemente para ele que depois de sustentar meu olhar por mais alguns momentos, suspirou.
— Esquece, acho que só estou confundindo as coisas. - falou antes de se afastar de mim, deixando-me completamente aturdida.
Fiquei ali no mesmo lugar tentando entender o que tinha acabado de acontecer. Mas como não encontrei outra resposta, além de Neitan estar ficando maluco, desisti de tentar compreender e fui até a barraca onde minha irmã estava. O tempo passou depressa e ao meio dia e meia, comemos os sanduíches que Mariana tinha levado e descansamos um pouco. À uma hora da tarde a praça foi liberada para o público e logo havia muitas pessoas estendendo toalhas de piquenique na grama ou armando suas cadeiras de praia.
O primeiro filme da tarde era Piratas do Caribe – A Maldição do Pérola Negra. Junto com as garotas, sentei sob uma árvore de onde se tinha uma boa visão da tela. Pensei em evitar Neitan durante a tarde, mas assim com Lídia e Léo, ele havia sumido. De certo tinham voltado para  casa. Aquele evento tinha sido uma ótima ideia pois dava a impressão que quase toda a cidade estava ali e o filme arrancou muitas risadas e uma salva de palmas quando acabou. Houve um intervalo de quinze minutos e quando o segundo filme começou a rodar, 10.000 A.C, resolvi dar uma volta.
— Meninas, vou esticar um pouco as pernas. - anunciei me levantando.
— Não vai ver o filme? - Mariana perguntou debaixo de seu boné de sol lilás.
— Não gosto desse, depois eu volto.
— Tá bem.
As duas disseram em uníssono e eu andei rápido para não ficar na frente das outras pessoas que queriam ver o filme. Caminhei vagarosamente ao redor da praça e comprei um saquinho de pipoca doce seguido de uma lata de chá gelado. Envolvida em meus pensamentos, nem reparei o quanto havia me afastado da praça. Então resolvi ir para casa, não era uma caminhada muito penosa e eu realmente precisava tomar um banho pois estava suada de tanto trabalho que tive mais cedo. Sem contar que estava muito calor.
Mais tarde quando voltei à praça, o terceiro filme já era exibido, desta vez era para as crianças. A animação; Madagascar 1. De modo que muitas pessoas que tinham acompanhado os dois primeiros filmes havia saído e muitas crianças haviam chegado. O tempo fechado não parecia afugentar ninguém e a iminência de uma chuva de verão não parecia ser temida, já que o lugar ainda estava cheio. Eu havia trocado minha calça jeans por um short e a regata, apenas por outra de uma cor diferente. Dei uma olhada em volta para ver se encontrava as garotas. Encontrei-as junto com Lídia, os irmãos e o primo, além dos Nunes e Catarina, numa sorveteria do outro lado da rua.
As mesas ficavam ao ar livre, e eles ocupavam duas delas. Com um suspiro irritado, percebi que teria que ficar por ali mesmo, já que tentaria ignorar Neitan por causa daquela cena estranha de mais cedo. Então dei uma de bond girl e saí me escondendo por trás das árvores para que não me vissem. Dei a volta no telão e passando pelo pessoal que cuidava da exibição dos filmes, vi a Igreja com as portas abertas. Parecia um convite que eu não pude recusar. Ao entrar na nave da bela construção gótica que havia levado dez anos para ser construída e concluída em 1929, senti uma onda infinita de paz.
Mesmo não sendo católica, nem tendo qualquer ligação com a Igreja, sempre me senti bem vinda nas missas que acompanhava meus avós quando pequena. Sentei em um dos bancos do meio, quase tudo que se podia ouvir era o som do filme vindo de fora e algumas vozes distantes. A única pessoa ali era eu. O que me levou a uma introspecção. A questão que me fazia era se eu deveria ir mesmo até aquele lugar desconhecido na floresta. Uma parte de mim queria ir e a outra dizia que era tudo uma maluquice. Mas eu já estava ali, o que tinha a perder? Me perguntava tomada de uma dúvida cruel. Envolvida naquela atmosfera de paz, passei um bom tempo perdida em meus pensamentos até que o som do meu celular tocando com  a música Batllefield da Jordin Sparkrs pareceu ecoar em toda a nave da Igreja.
— Alô?
— Onde você está? - exigiu Mariana do outro lado da linha. Revirei os olhos.
— Estou na Igreja atrás do telão.
— Você sumiu!
— Adoro fazer isso. - zombei e a escutei suspirando, pelo que me pareci, como irritação.
— Engraçadinha. Vai ficar aí ou vai vir assistir o próximo filme com a gente? Já está começando.
— Que filme é? - perguntei ao me levantar.
— Van Helsing – O Caçador de Monstros. Você adora esse filme, né?
— Sim, já encontro vocês.
Falei, encerrando a ligação, ao sair já se passava das seis horas da tarde e com o tempo nublado, já estava bem escuro. As luzinhas amarelas já iluminavam as árvores e o som da abertura do filme soava alto. Passei pelo lado externo da praça para não atrapalhar o pessoal que havia lotado o lugar outra vez. Eu não parecia a única fã do filme por ali. No mesmo lugar de antes, embaixo de uma árvore, vi Mariana e Ágatha além dos outros. Quando me viu, Ágatha levantou-se e veio em mim direção – estando eu ainda longe.  
— Onde você se meteu guria? - exigiu ela – Por que  me deixou sozinha com a Mariana e esses amigos estranhos dela? - minha irmã sussurrou entredentes ao agarrar meu braço.
— Hã? - não pude evitar de rir depois disso – Amigos estranhos? O que aconteceu? Pensei que estivesse bem ansiosa pra conhecê-los.
— Tá, mas eles ainda são estranhos, né? Não me sinto à vontade com eles.                                                      
— Sério? - desdenhei, lembrando-me de ter sentindo a mesma coisa quando os conheci.
— Sério sim!
— Está bem, desculpe por ter esquecido você aqui com eles. Agora vamos ver o filme.
Disse eu já indo em direção de onde estavam. Sentei na toalha grande ao lado de Mariana e minha irmã ficou ao meu lado. Tentei manter meus olhos fixos na tela, mas minha intenção foi traída pelo impulso de dar algumas olhadas furtivas para Neitan. Ele estava na outra ponta da toalha – bem distante de mim – e não parecia prestar atenção ao filme. Parecia pensativo e olhava para baixo. Pelo jeito, eu estava sendo correspondida em evitá-lo. Um pouco depois da metade do filme, quando a noite escura já havia caído por completo – senti sede.
— Vou comprar algo pra beber, você quer? - sussurrei para minha irmã.
— Quero sim, obrigada.
— O que vai querer? - indaguei me preparando para levantar.
— Um refrigerante de laranja.
Pediu ela e eu assenti, antes de me levantar. Minhas pernas já estavam formigando pelo tempo que mantive-as dobradas na mesma posição. Enquanto caminhava pela calçada, tive a nítida impressão de ver algo como um borrão se mover para atrás de uma árvore. Estaquei. Com um olhar receoso, vasculhei em volta, mas não vi nada além do movimento das pessoas ao meu redor. Engoli em seco e segui em direção à uma das barraquinhas que vendiam bebidas. Enquanto comprava um cá gelado para mim e o refrigerante para minha irmã, descobri do outro lado da rua uma figura estranha.
Era alguém de cerca de um metro e sessenta de altura, ou talvez um pouco mais que isso, e mesmo com o calor usava calça e moletom pretos. O capuz estava puxado sobre a cabeça o que impossibilitava de ver seu rosto. E nitidamente, me encarava. Voltei a atenção para o homem que me entregava as latinhas e depois de pagá-lo, comecei o caminho de volta. Meu coração aos poucos tinha seu ritmo aumentado e  minha boca estava seca. Olhei para o outro lado, mas aquela figura não estava mais lá. Quando uma mão pousou em meu ombro, quase morri de susto.
— O que houve? - perguntou Neitan me olhando de uma forma avaliativa.
— Você me assustou! - acusei-o, sentindo meu coração quase fazer um buraco no meu peito e sair pulando.
— Você está bem? - ela perguntou olhando ao redor de forma minuciosa.
— Estou sim, por que não estaria?
— Hum... nada. Resolvi comprar um refrigerante também. - anunciou ele tirando a mão do meu ombro, mas quando ele começou a se afastar, senti uma urgência irracional de ficar perto dele. Eu me sentia segura ao seu lado, embora não soubesse porquê. - Já sei o que você vai dizer Lavígnia. - Neitan disse assim que me coloquei ao lado dele.
— Sabe? - retruquei confusa.
— Vai querer uma explicação sobre meu comportamento de hoje de manhã, e a explicação é que não consigo explicar minhas reações quando estou com você. Dessa forma estou saindo fora de mais uma discussão com você.
Replicou ele sem me olhar. Mas eu o encarei mais confusa que antes, o que ele queria dizer com aquilo?
— Hã... como é?
— Como você ouviu – reiterou ele virando-se para voltar e eu o segui – é estranho como em quase todas, as vezes desde que nos conhecemos, acabamos brigando por alguma idiotice que eu faço. - ele disse emburrado, o que admito que o deixava uma gracinha.
— Pois é... então é melhor deixar isso pra lá. - eu decidi e ele me olhou surpreso.
— Sério? Você tem uma personalidade tão forte que achei que fosse me xingar durante uns vinte minutos. - revelou me fazendo rir.
— Bem, obrigada por sua análise da minha personalidade. Mas o fato é que brigo mais com você do que com meu namorado. Não gosto disso. - falei, vendo-o enrijecer, pareceu bem incomodado com a menção do meu namorado.
— De passar mais tempo comigo do que com ele? - disparou ele e eu estreitei os olhos.
— Isso não é verdade.
— Mesmo? - ele foi bem irônico – então talvez seja porque você sempre fica nervosa quando me aproximo? - disse ao se virar para mim e eu engoli em seco.
— Está confundindo as coisas, Neitan. - avisei e ele riu de canto.
— Isso desde a primeira vez que te vi. - ele disse parecendo meio chateado e saiu me deixando perplexa.
Fiquei ali parada com as latinhas na mão enquanto tentava digerir as palavras dele. E perguntei se Mariana estava mesmo certa em dizer que Neitan estava gostando de mim. Sacudi a cabeça, expulsando aquela hipótese pois eu realmente não queria lidar com algo desse tipo. Quando voltei, entreguei o refrigerante para minha irmã e me sentei, bebericando meu chá. Mas como eu já suspeitava, não consegui prestar mais atenção ao filme.
— Vai voltar pra Porto Alegre amanhã? - ouvi a voz de Ágatha e só aí me dei conta de que o filme já tinha acabado.
— Não sei, pensei em ficar mais um tempo por aqui. - respondeu Mariana e eu me levantei.
— Sério? Mas e as suas aulas?
Minha irmã perguntou, mas eu não prestei atenção à conversa e olhei ao redor. Como já passavam das oito horas, muitas pessoas já estavam deixando a praça, embora ainda faltasse o último filme, Uma Noite  no Museu.
— Bem, nós já vamos indo. É um longo caminho até em casa. - falou Lídia se aproximando de nós.
— Nós também já vamos, mas o dia foi ótimo né? - Mariana falou.
— Foi mesmo, precisamos repetir.
Depois de todo mundo se despedir de todo mundo, voltamos pra casa no meu carro. Fiquei calada o tempo todo, minha cabeça estava uma bagunça e tudo que eu queria era ir para a minha cama. Dispensei o jantar e escapuli para o meu quarto enquanto as meninas e os avós ficaram conversando. Tapei a cabeça com o travesseiro e tive trabalho para pegar no sono. Mas quando finalmente consegui, tive outra vez o mesmo sonho. A mesma cena na floresta, as mesmas pessoas enterrando a mesma caixa. Acordei e fiquei rolando na cama até pegar no sono outra vez e outra vez o sonho se repetiu e outra e mais outra. Até que sentei na cama, olhei para a semi escuridão por alguns momentos e pulei da cama. Indo até a janela, abri as cortinas e encarei a floresta escura.
— Tudo bem, você quer que eu vá até aí, não é? Pois eu vou por um fim nisso hoje.
Falei antes de correr até o guarda roupas e trocar meu short de dormir por calça jeans, babylook e tênis. Eram pouco mais da uma e meia da manhã. Desci as escadas para o cozinha rápido e sem fazer barulho. Fui até uma das gavetas da cozinha onde ficavam os utensílios de jardinagem da minha vó e peguei uma pazinha e em outra gaveta consegui uma lanterna. Eu estava completamente decidida a fazer uma verdadeira  loucura. Abri a porta para os fundos com o mesmo cuidado para não fazer barulho e saí para o pátio.
A lua cheia iluminava a noite silenciosa, mas entre as árvores estava escuro. Atravessei a rua e entrei como um raio na floresta. Ao ter avançado uns vinte metros, parei.
“ Mas que droga estou fazendo? ”
Me perguntei ao reparar a escuridão ao meu redor acompanhada pelos ruído dos animais da mata. Eu poderia acabar me perdendo e isso poderia custar minha vida. Quem me encontraria se isso acontecesse?
“ Você não quer dar um jeito nisso tudo? Deixa de ser covarde! ”
Gritei comigo mesma. Suspirei enquanto iluminava as plantas baixa em minha frente. Procurei por meu celular, mas é claro que não estava com ele. Olhe outra vez para a frente e lembrei de todos os sonhos e acontecimentos estranhos que haviam acontecido comigo e respirei fundo.
— É agora ou nunca.
Falei antes de me embrenhar entre as árvores. Eu não tinha ideia do caminho que estava fazendo, mas era como se soubesse exatamente para onde estava indo. Meus passos eram firmes ao contrário da minha respiração que oscilava, no fundo eu estava muito ansiosa para saber o que havia naquele lugar. Mas o mais importante era; o que tinha a ver comigo?
Depois de vinte minutos ou meia hora, vislumbrei entre as árvores uma pequeno espaço banhado pelo luar. Era uma clareira. Meu coração disparou. Andei mais rápido e passei entre os troncos saindo na clareira coberta pela grama, mas o que mais se destacava era a grande araucária. Era ela mesma. A grande araucária de meu sonho repetido, com a mesma grande depressão em seu tronco. Só num lugar bem alto do que eu via neles, o que me dizia que o acontecimento daquela noite e esta noite, estavam separados por muitos anos.
Caminhei pela clareira até parar no meio dela. Olhei diretamente para a árvore grande e foi como se visse a cena daquelas pessoas se desenrolando em minha frente. Corri e caí de joelhos ao pé da araucária. Comecei a afastar as folhas que cobriam o chão, então posicionei a lanterna para que me auxiliasse e comecei a cavar a terra endurecida. Estava possuída por uma força e um sentimento que não senti jamais. Algo que eu não saberia explicar, mas que me impulsionava de uma forma que eu não podia resistir. Apenas talvez o som de folhas sendo esmagadas sob os passos de alguém. De um salto me levantei, e apontei a lanterna para a floresta. Meu coração saltava feito um louco, mas eu não estava com medo. Sentia sim, algo muito estranho que dava a certeza de que se eu tivesse que lutar contra alguém para continuar o que estava fazendo, eu lutaria.
— Lavígnia? - a voz conhecida soou por trás de uma lanterna também e eu franzi o cenho.
— Ágatha? - era minha irmã ali – O que está fazendo aqui? - indaguei completamente surpresa.
Posso perguntar a mesma coisa, o que faz no meio da floresta?
— Eu cheguei primeiro! Eu é que tenho que perguntar. Como chegou aqui, por que está aqui? Ágatha me diga!
Exigi perplexa, e minha irmã caminhou lentamente analisando o lugar, até para em minha frente. Seus grandes olhos castanhos estavam assustados, mas havia uma força incomum em sua postura.
— Ok... chega de máscaras, já que não possível que estejamos aqui por uma coincidência. Não larguei a faculdade para poder descansar, larguei porque há algum tempo venho tendo sonhos estranhos que me impulsionavam pra este lugar.
Minha irmã confessou, fazendo-me sentir meus joelhos vacilarem. Estava acontecendo a mesma coisa com nós duas. A mesma força nos atraía e guiava. Era minha  hora de fazer confissões também, mas não tudo.
— Está acontecendo a mesma coisa comigo... não sei explicar. Mas isso quase me enlouqueceu, tive que largar tudo e vir para cá. Para este lugar. - baixei os olhos, examinando o chão em volta.
— Não é possível – Ágatha sussurrou – o que está havendo com a gente? Isso não é normal!
— Sei que não é, mas seja o que for. Vamos por um fim nisso hoje mesmo... ou talvez começar. - vacilei na última palavra e a vi engolir em seco.
— Então vamos... ouviu isso?
— Ouvi. - respondi, voltando a lanterna para a floresta, assim com Ágatha fez.
— Meninas? - a voz de Mariana soou antes que sua figura perplexa surgisse à nossa frente.
— O que está fazendo aqui? - a pergunta saiu em uníssono.
— O que vocês fazem aqui? - devolveu Mariana sem esconder a surpresa.
— Deixa eu adivinhar – começou minha irmã – você tem tido sonhos pra lá de estranhos que te mandam pra cá?
Ela perguntou incondicionalmente séria e Mariana deixou o queixo cair. O clima ficou mais estranho ainda.
— Exatamente isso – Mariana admitiu – vão me dizer que está acontecendo a mesma coisa com vocês? Embora já está claro que sim.
— Sim, tem alguma coisa anormal e estranha acontecendo com nós três. Temos que saber o que é. - proferiu minha irmã e eu respirei fundo e rapidamente.
— Então vamos lá.
Decidi, voltando para o pé da araucária. Continuei cavando a terra escura enquanto as meninas ficaram uma de cada lado, apontando as lanternas para o buraco que – a cada pá de terra que eu tirava – fazia meu coração disparar mais. O silêncio era pesado embora, gritasse o que todas estávamos sentindo. Alguns fios do meu cabelos caiam no meu rosto, enquanto eu cavava cada vez com mais pressa. Finalmente eu saberia o que estava dentro daquela caixa que via nos sonhos, assim como minha irmã e minha prima. Então, a pá fez um ruído ao bater contra algo sólido. Ofeguei.
— Encontrei. - anunciei, percebendo que as duas agachavam-se ao meu lado.
— É a caixa! - Mariana deduziu enquanto eu tirava a terra de sobre algo prateado.
— Isso é tão estranho... por que tivemos exatamente o mesmo sonho, gente? Estou com medo disso. - Ágatha confidenciou.
— Eu também. - Mariana concordou enquanto eu tirava do buraco aquele objeto misterioso.
— É exatamente como eu via... - sussurrei, surpreendida com a exatidão dos sonhos. Peguei a caixa e levantei. Fui seguida pelas duas até o meio da clareira, onde a lua cheia em seu auge, brilhava sobre nós.
— O que será que tem aí? - Ágatha inqueriu num fio de voz.
— Esse é o grande mistério, mas já vamos descobrir. - declarei, sentando-me no chão e colocando a caixa em minha frente. As meninas sentaram ao redor e formamos um círculo ao redor da caixa prateada.
— Parece bem antiga. - observou Mariana, enquanto eu tirava a terra escura da tampa que ostentava arabescos típicos da decoração de objetos de alguns séculos atrás.
— Tenho certeza que sim – falei, erguendo a parte da tranca onde deveria ter um cadeado – ok... vamos lá.
Anunciei, erguendo a tampa. Meu coração perdeu uma batida, e os objetos prateados reluziram sob o luar. Não consegui acreditar no que via ali, não era possível.
— Oh minha nossa! - minha irmã exclamou – Não é o mesmo símbolo da tatuagem do Zac?
— É sim – confirmou Mariana, pegando um dos cinco medalhões – são os mesmos medalhões que eles usam!
Estendo a mão, peguei um deles e sob a luz da lanterna, descobri ser exatamente o mesmo medalhão. Prateado, a águia, as espadas, as seis letras. Mas por quê?
— O que significa isso? - sussurrei para mim mesma, então um sentimento estranho me percorreu. Um bem estar inoportuno para a ocasião, como se eu tivesse encontrado algo há muito perdido.
— Mas por que encontraríamos algo que não nos pertence? - Ágatha fez a pergunta que eu tinha flutuando em minha mente.  
— E se não deles? - Mariana sussurrou.
— É claro que é! Eu os vi usando. - replicou minha irmã.
— Talvez devêssemos perguntar pra eles.  
Mariana sugeriu, mas eu me sentia alheia ao que elas falavam. Estava envolvida demais com o que sentia. Perdida era a melhor palavra para definir meu estado. Eu era a única ali que sabia sobre a história do segredo que nossa família guardava, mas o que algo relacionado a Neitan e a família dele teria a ver com a nossa? Quem me explicaria aquilo?
— Não. – eu disse – Se foi revelado para nós, eles não devem saber porquê.
— Então o que vamos fazer, Lavígnia? Isso não é normal, não é coincidência, nem nada que possamos explicar! Isso virou minha vida de pernas pro ar e agora que descobri o que tem aí, não sei o que é. - minha irmã expôs muito bem o que eu também estava sentindo.
— O que está acontecendo com a gente? – Mariana choramingou, estava bem nervosa – Isso é impossível, é irreal demais.
— Bem... – suspirei – Já disse Shakespeare que há muito mais coisas entra o céu e a terra, do que possa pressupôr a nossa vã filosofia. - recitei, ganhando um olhar resignado das duas.
— Então o que vamos fazer? - minha irmã perguntou.
— Bem, pra começar, vamos voltar pra casa. - proferi ao largar o objeto de volta na caixa. Elas fizeram o mesmo, mas não deixei de notar a relutância. A mesma que senti ao colocar o que segura na caixa. Mas por quê?
— É mesmo, temos que estar à beira da loucura para se enfiar na floresta de madrugada.
— Verdade – Mariana concordou com Ágatha – espero que encontremos o caminho de volta.
Mas para desmentir o medo de minha prima, não foi difícil encontrar o caminho de volta para casa, mesmo no meio das sombras. Ainda que entrecortada pelos raios lunares, a escuridão entre as árvores era intensa. Minha cabeça girava tentando encontrar uma resposta. Mas a única que eu via, era voltar para Porto Alegra e pressionar o Conselho. Eu tinha certeza de que eles saberiam me dizer algo a respeito daquilo. Por enquanto, eu não tinha a menor ideia se tudo o que eu sabia devido à entrada no Conselho tinha relação ao que havia acontecido naquela noite. Mas de uma coisa eu tinha certeza; não contaria nada a elas.
— A caixa fica com você, já que foi a primeira a chegar lá. - Ágatha apontou, assim que fechou a porta do meu quarto. Tínhamos entrado na casa como fugitivas adolescentes, no meio da madrugada e sem fazer ruídos.
— É justo. - concordou Mariana sentando-se na cama. - Mas ainda acho que devíamos falar com o Neitan... tipo, é o mesmo símbolo que ele e os outros usam. Deve ter alguma relação.
— É claro que não, Mari! – minha irmã discordou -  O que eles vão dizer se souberem que esbarramos em algo que é deles? A propósito, você sabe o que significam?
— Como eu saberia?
— Porque vive grudada neles, oras! - disparou Ágatha.
— Nunca perguntei. - lamentou com um suspiro.
— Então é só perguntar.
— Eu perguntei. - interrompi e ganhei um olhar curioso delas.
— Mesmo? - a pergunta saiu em uníssono, mas a segunda parte veio só de Ágatha – E o que descobriu?
— Quase nada, Neit me disse que era uma antiga aliança da família deles. - respondi.
— Mas que raios temos a ver com isso?! - inqueriu minha irmã colocando as duas mão no rosto.
— Temos que descobrir. Mas como?
Mariana perguntou e eu suspirei. A coisa estava complicada mesmo, eu tinha a impressão que havia uma linha tênue entre tudo o que eu sabia e a explicação para o achado daquela noite. Mas eu simplesmente não conseguia dar o salto mental necessário para juntar os pauzinhos. Todavia, não havia problemas já que se eu não conseguisse arrancar de alguém do maldito Conselho, arrancaria de Neitan.
— Fiquem tranquilas meninas, eu sei o que fazer.
— Sabe? - as duas perguntaram.
— Sim eu sei... mas infelizmente não posso contar pra vocês. Não agora pelo menos. - respondi, prevendo que faltava muito pouco para todos os segredos caírem por terra.
— Por que não pode contar? - minha irmã exigiu, juntando as sobrancelhas.
— O que você sabe, Lavígnia? - Mariana pressionou, levantando-se da cama.
— Sei que não posso revelar um segredo porque ele não é só meu. Mas eu prometo que, se eu não ficar satisfeita com o que ouvir, vocês saberão de tudo.
As duas trocaram um olhar assustado diante de minhas palavras. Certamente se perguntando do que eu estava falando.
— Você sabe muito mais do que a gente não é? - minha irmã sondou.
— Não podem me chamar de louca outra vez, não é? Já que desta vez vocês viram com os próprios olhos. - joguei verde, relembrando que nem uma das duas tinha acreditado em mim depois do que aconteceu no ano passado.
— Lavígnia... - Mariana começou, mas eu a interrompi.
— Está tudo bem, não vamos reviver aquela ocasião. Agora o melhor que temos a fazer é ir dormir, já são quase três horas da manhã. - apontei o relógio e elas pareceram concordar.
— É mesmo... de manhã podemos conversar melhor e resolver isso.
— Concordo. - disse Mariana – boa noite meninas.
— Boa noite. - respondemos em uníssono e assim que ela saiu, Ágtha se voltou para mim.
— Seja lá o que você está escondendo irmã, vai ter que me contar. Não larguei minha vida no Amazonas por nada. - ela disse muito séria, adulta como nunca e mostrava.
— Eu prometo. - disse com firmeza  pois já estava cansada de guardar aquele segredo sozinha.
— Ótimo mas antes de sair... - ela caminhou até a caixa em cima da cama e abrindo, pegou um medalhão – quero ficar com este. Pelo menos para ter certeza de que tudo isso aconteceu mesmo, quando amanhecer.
— Claro. - concordei me sentindo física e mentalmente exausta.
— Boa noite. - ela disse saindo.
— Boa noite.
Respondi, fechando a porta. Caminhei de volta à cama e fitei a  caixa. Então eram medalhões o que aquelas pessoas enterram. Mas por que enterraram? Por que não queriam mais? Quem eram aquelas pessoas? Que ligação tinham com Neitan e a família dele? Por que minha irmã e minha prima tiveram os mesmos sonhos que eu? Que força era essa que havia nos puxado para Bom Jesus? E o mais importante; o que nós tínhamos com tudo isso?


 Peguei um dos medalhões e o avaliei; parecia tão antigo. Forjado em m metal prateado que já apresentava alguns pontos pretos por envelhecimento. Por que eu me sentia tão ligada a ele? Meu pressentimento que de que daria o start em algo muito grande, havia se cumprido. Em vez de resolver tudo, eu tinha descoberto que encontrar respostas, traz à tona muitas perguntas.

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